
encontros aos domingos
16 horas no TEAF
ROCK NA FLORESTA
FUTURO
por Jean Rezendes
Quando o filme começa nossa visão encontra uma cidade que se estende e cobre todo o horizonte, com prédios gigantescos, que expelem fogo com a naturalidade de um dragão que está se espreguiçando e ergue sua boca aos céus. Ocasionalmente um veículo cruza os céus aparentemente sem fazer nenhuma força. Algumas construções se destacam e delas nos aproximamos. São pirâmides imponentes, como construídas por civilizações antigas, entretanto carregadas de luzes e erguidas com metal. Essa cidade inconcebível é o futuro. Começamos a viajar sem nos mover. É o que Ridley Scott nos mostra em Blade Runner.


Quando a música começa a tocar eu reviro meu cérebro para entender o que está acontecendo. Não é rock, não é metal. Também não é jazz, não é soul. Tão pouco é reggae, nem é pop. Poderia ter sido preconceituoso (e muitas vezes eu o sou) e ter dito que era apenas uma música de elevador. Mas também não era isso. Tinha uma guitarra pontual, que sabia se mostrar quando era necessária. Muitas percussões despontavam, de muitas formas, de várias intensidades. Metais gritando. Teclados fazendo sua mágica. Um baixo hipnótico, como se fosse o condutor da locomotiva. Uma voz carregada de bom humor, ironia e acidez. E ocasionalmente algo mais estranho ainda como uma flauta ou um som que parece ecoar do interior da Austrália. Tive que admitir... eu não sabia o que era aquilo. E era bom. Era como caçar um replicante mais poderoso que eu mesmo. Jamiroquai.
O mais impressionante no início de Blade Runner é o reflexo de toda a magnitude da cidade futurista em uma íris. Um prenuncio do que viria: o teste Voidt-Kampf que observa a reação das pessoas, especialmente da íris para detectar se são humanos ou androides perfeitos. O filme, uma obra singular e primorosa, nos apresenta um futuro que tentamos não ver, onde as cidades e a sociedade serão cada vez mais sujas. Não teremos belas cidades flutuantes e livres de poluição, não teremos um paraíso livre de doenças e pobreza, não teremos uma utopia angelical. Nosso futuro estará envolto em classes sociais cada vez mais divididas, em corporações cada vez mais onipresentes e cujo poder ultrapassará a força das nações, em conflitos éticos para os quais ainda não estamos preparados. E esse é o ponto central de Blade Runner, quando criarmos algo tão perfeito quando nosso próprio ser teremos o direito de exercer propriedade sobre isso?

O filme nos apresenta um futuro que tentamos não ver, onde as cidades e a sociedade serão cada vez mais sujas.

Tive que admitir... eu não sabia o que era aquilo. E era bom. Era como caçar um replicante mais poderoso que eu mesmo. Jamiroquai.
Ouvir algo que foge dos padrões a que estamos acostumados é uma boa experiência. Descobrir que existem muitas coisas a serem exploradas e que nossa mente é apenas uma pequena luz num universo cintilante e efervescente. É o que me vem há mente quando penso em toda a variedade, variação e experimentação ao qual o Jamiroquai me expôs. Depois vim a descobrir que eles são classificados como uma banda de acid jazz e de funk (favor não achar que falo daquela coisa triste que eclodiu no Rio de Janeiro), mas eu costumeiramente odeio e rejeito rótulos, então, achei divertidos os nomes, mas continuo pensando que fazem muito mais, que cada faixa tem algo único que me agrada como se fossem 10 bandas diferentes tocando no mesmo espaço e tempo.
O filme ainda reserva momentos poéticos. Deckard mesmo em momentos de investigação sustenta um clima noir como se estivesse em 1930, Rachel é uma personagem de uma beleza ímpar que assegura isto em formas e fazeres, e Roy, o líder dos replicantes rebeldes, é dotado de uma sagacidade que nos faz torcer por ele, culminando sua existência com um dos trechos mais bonitos do cinema: “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque ardendo no ombro de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”, um solilóquio tão brilhante e obra do improviso, pois Rutger Hauer, o ator que interpreta Roy, não seguiu o roteiro original e criou ele mesmo esse trecho, adaptando as sugestões que recebeu e fazendo do clímax do filme um momento inesquecível. Ademais, o ponto que mais me intrigou na obra é quando somos questionados sobre a criação de uma outra vida, e a posterior escravização da mesma. Nossa raça chegará um dia ao ponto de criar um ser com inteligência própria, tão semelhante a nós mesmos que terá seus próprios anseios e desejos? E este ponto ultrapassado, os usaremos como mão de obra para diversas áreas, como exploração de regiões perigosas, operários e prazer? Seremos deuses tão cruéis que criaremos vidas e as trataremos como nossas posses? Haverá uma alma animando esses seres criados a nossa imagem?
Se caminhar rumo ao futuro é experimentar o desconhecido, Jamiroquai me dá essa mesma sensação. Cada canção é uma nova descoberta, cada riff de guitarra é único, cada ritmo conduzido pelo baixo explode em meus tímpanos com novas intensidades, cada letra de Jay Kay viaja (sem se mover) para uma nova área, cada inserção dos metais ou da flauta me revela reflexos de universos ocultos, cada timbre da percussão descompassa minha pulsação de maneiras novas. Não há repetição. Cada curva tem sua própria inclinação. Cada reta exige uma única aceleração. Cada ultrapassagem revela um novo fôlego. Ao começar a ouvir a faixa “Travelling Without Moving” somos instigados a acelerar como um motor, é o motor do Jamiroquai nos levando na velocidade que gostam, “mais rápido do que uma bala acelerando”, e seguimos com o baixo em primeiro plano, solando, conduzindo, harmonizando com todos os outros elementos divergentes que convergem sem nenhum risco para nossa sanidade.
Assistir Blade Runner e tentar perceber se Deckard é humano ou um androide, e se ele suporta o status quo ou se quer desfazê-lo. Ouvir Jamiroquai e saber que o ritmo de cada canção é bom e harmonioso, mas será único porque eles não usarão a mesma fórmula outra vez. Um filme brilhante, baseado em “Do Androids Dream about Eletric Sheep?” (Androides sonham com Ovelhas Elétricas) que já foi acusado de ser moroso e sofreu várias intervenções de executivos, resultando em 7 diferentes versões (The Final Cut é a que mais agrada ao senhor Scott). Uma banda versátil, que é o jam dos Iroquai, uma tribo nativa do norte da América, cuja filosofia de vida agrada muito ao líder e fundador Jay Kay, tanto que é como vê-lo se apresentando com vestimentas e cocar que se assemelham aos originais. E basta ouvir uma canção, “Space Cowboy”, e você poderá compreender tudo o que falei aqui. Sim, eu vi o futuro quando vi e ouvi essas obras!
Assistir Blade Runner e tentar perceber se Deckard é humano ou um androide, e se ele suporta o status quo ou se quer desfazê-lo.

Space Cowboy
Jamiroquay
Se caminhar rumo ao futuro é experimentar o desconhecido, Jamiroquai me dá essa mesma sensação.